Deobrando tinha uma penca de irmãos. Naquela época, já passavam dos treze ou catorze. E todo ano aumentavam em um ou dois.
Entre os mais velhos, tinha um que virou o herói da nossa turma. Um sujeito que tomava chá de sumiço por três, quatro, cinco meses seguidos. Mas, quando voltava, era uma alegria geral.Trazia uma maleta nas mãos, novinha em folha, cheia de roupas boas, lembranças dos lugares por onde passava, dinheiro nos bolsos, e muitas histórias pra contar.
O chapéu Ramenzoni ainda estava na moda. Nos lembrava um Jim das Selvas ao vivo. Sem o chicote, é claro. Aquilo era coisa de cinema seriado.
Em geral, fazia uma festinha no quintal da casa dos pais, regado a sanduíches de mortadela com guaraná. Uma caçulinha pra cada um, era coisa pra não esquecer.
O melhor eram as histórias. As contava de uma maneira que nos fazia participar das aventuras. Jacarés coalhando as lagoas, cobras que podiam engolir um bezerro, piranhas deste-tamaninho que sumiam com um homem em poucos minutos...Minas de diamantes onde encontrar a pedra certa deixava uma pessoa rica por muito tempo...
Mas nossos ouvidos de pré-adolescentes queriam saber era das aventuras nas tais "casas da luz vermelha". O chato é que tínhamos que esperar a poeira da chegada assentar. As pessoas mais velhas, e mais novas, não podiam participar desses relatos, que chegavam a ser melhores que os catecismos de Carlos Zéfiro.
Pois um dia escafedeu-se novamente da vila. As notícias eram de que ele estaria num lugar onde o Governo estava construindo uma nova Capital. Para atrair gente, estavam dando emprego bem pago, e terrenos grátis para aqueles que se aventuravam ir pro meio do nada.
Desta vez estava demorando. A família recebia algumas cartas, que foram rareando com o passar do tempo.
Um dia, durante a pelada do vira-seis-acaba-doze, vimos uma figura caminhando pela estrada. Com o sol quase poente pelas costas, só quem o reconheceu foi o Deobrando.Largamos a bola - de capotão - e corremos para cercá-lo, como sempre fazíamos quando chegava.
Desta vez, a admiração foi por ver a figura suja, quase esmolambada, botinas desbeiçadas, maleta velha nas mãos, e um saco de aniagem com alguns trecos dentro, nos ombros. O ramenzoni amarfanhado e sujo, nem dava pra ver qual seria a cor original. Barbado e cabeludo, quase não lembrava o irmão de Deobrando de outrora.
Acompanhamos aquela figura, levemente estranha para nós, até a casa dos pais. Bastou meia hora pra ouvirmos a nova história que ele tinha pra nos contar.
Contou que foi pra tal NOVACAP, junto com outros milhares de brasileiros de todos os lugares. No inicio, foi tudo de bom. Trabalho e salários garantidos. Muito dos dois. Terreno grátis era pra quem tinha trazido a família junto. Mas os alojamentos eram bem melhores que os que tinha nas minas. Até as casas da luz vermelha eram ótimas. As pessoas eram chamadas de Candangos. Não explicou o apelidoque ficou grudado nele.
Contou que aos poucos, as coisas foram piorando. Os salários já não estavam em dia, os alojamentos deixavam a desejar e a comida não era tão farta como no começo. O que não faltava eram os feitores obrigarem os operários a trabalharem além das forças.
Um dia foi servido comida estragada no tal bandejão do alojamento. Aquilo causou um quebra-quebra que precisou da polícia para apartar. Os operários botaram os policiais pra correr. A quantidade de cada grupo era muito diferente e os milicos não aguentaram nem dez minutos de pancadas.
Quando tudo parecia calmo, já de madrugada, os policiais voltaram. Já desceram dos caminhões atirando e, com as luzes do alojamento apagadas, não economizaram balas.
Contou como se embrenhou pela mata até encontrar um pau-de- arara que o levou pra longe dali. No caminho, encontrou outros fugitivos que comentaram o dia seguinte da guerra. Diziam que dezenas de corpos foram jogados nos buracos abertos para servirem de alicerce de um dos prédios que seria construído. Por cima dos corpos, foram despejados muitos caminhões de concreto e pronto.
Contou que levou semanas pra chegar na vila, pegando carona, pois dinheiro não tinha. Pagava as passagens e a comida com as roupas boas que ainda restavam. Desta vez ficamos sem saber de histórias das casas da luz vermelha.
Anos depois, fiquei sabendo que Candango morreu num tiroteio, dentro de um brega, num lugar chamado Serra Pelada. Um garimpo que deixou muita gente sonhando com as riquezas que ele perseguia sempre.
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