Mesmo no prédio do Leblon onde mora desde a década de 1980, Zé Ramalho carrega o sertão paraibano. A pequena Brejo do Cruz natal está, de forma clara, no sotaque e na base de suas referências poéticas e musicais. E, mais profundamente, nos valores que afirma em sua vida e carreira: a defesa dura de suas convicções; as relações baseadas na fidelidade extrema; a recusa do perdão aos desafetos. Sobre todos esses valores, a solidão do sertanejo que se basta com sua peixeira e gibão. Sua gravadora, Avôhai Music, que estreia com seu novo CD "Sinais dos tempos" (nas lojas no início de julho, o primeiro de inéditas desde 2007), é apenas a mais recente manifestação de seu caráter, que começou a se formar exatamente em pleno sertão paraibano:

— Meu pai morreu quando eu tinha 2 anos, afogado num açude, no meio do sertão — lembra. — Sem irmãos, descobri na solidão uma forma de me encontrar, encontrar meu lugar.

Mais do que se colocar no mundo pela solidão, Zé se orgulha dela, de ter afirmado em sua vida a sentença de Euclides da Cunha, "o sertanejo é, antes de tudo, um forte". Foi sozinho que Zé dormiu nas ruas do Rio enquanto buscava a oportunidade de gravar seu primeiro disco. E faz questão de dizer que não teve ajuda para largar o vício da cocaína, que chama de "fase negra" em "Indo com o tempo", que abre o novo CD.

— Foram três, quatro anos consumidos com drogas (na virada dos anos 1980 para os 1990, o que fez sua carreira entrar em suspensão). Deixei sozinho. Não fiz tratamento em clínica, nem psicanálise, nada — diz, antes de esclarecer que não se lamenta, usando a mesma frase que usa ao falar do pai. — As coisas são como são, e tudo foi importante para que eu fosse o que sou.

A ida para Campina Grande aos 3 anos, onde ouviu rádio pela primeira vez, e a chegada aos 11 em João Pessoa, onde conheceu o mar, lapidaram a sensibilidade do filho bruto do sertão, abrindo o caminho para a arte. Mais tarde, a audição de Bob Dylan se juntou aos gêneros nordestinos, a passagem por bandas de baile o apresentou a outros gêneros, vieram as leituras do neomisticismo de Carlos Castaneda e Erich von Däniken ("Eram os deuses astronautas?") e da filosofia pessimista de Aldous Huxley ("Admirável mundo novo" inspirou "Admirável gado novo") e as experiências com cogumelos (a "amanita matutina" da letra de "Avôhai"). 

CDs e discos autoproduzidos

Mas nada foi capaz de amaciar a dureza com que Zé Ramalho defende suas convicções artísticas (sintetizada em frases como "nunca ninguém em gravadora mandou em mim" ou "não faço discos para jornalistas, nem mesmo para fãs"). É ele quem dirige seus shows e produz seus CDs (há 15 anos, divide a tarefa com Robertinho de Recife).
— Tenho uma dificuldade enorme de ser dirigido. No DVD "Ao vivo" (de 2005), João Falcão ia ser o diretor — conta. — Na primeira reunião, falou: "Zé, vou te botar vestido de Dom Quixote." Eu disse: "Isso não vai rolar." E não rolou. Eu mesmo dirigi.

Robertinho confirma:

— Mesmo quando é convidado no disco de outro, ele quer fazer no meu estúdio, do jeito dele. Recentemente, gravando uma participação no CD de Paula Fernandes, ele teve um atrito com um diretor da Universal (gravadora da cantora), que quis dar umas sugestões. Ele não admite que ninguém se meta na criação dele — conta o produtor. — Mas é ótimo produzi-lo, porque ele sabe o que quer.

Os 15 anos ao lado de Robertinho não são uma exceção. Sua banda tem integrantes que trabalham com ele desde os anos 1980. A relação com os músicos é de uma fidelidade baseada, novamente, em valores sertanejos. Ele exige deles exclusividade:

— É para não dividir as cabeças deles com outros sons. Quero todos focados — explica.

A liderança que exerceu sobre os filhos — são seis no total — vem de uma autoridade de outra natureza.

— Fiz besteiras de adolescente, ele dava conselhos — lembra João Ramalho, de 33 anos, que canta em "Sinais dos tempos". — Mas sinto que ele também deixou a gente viver, "deixa se arriscar para bater a cabeça, porque assim se aprende". Nunca encostou a mão em ninguém, mas tem a força da palavra. Ouvia aquele vozeirão e respeitava.

Pai que gosta de ver a família reunida, em casa ele encontra espaço para cultivar a solidão na meditação diária, ao som de ambient (gênero que mais ouve hoje), seguida de caminhada, algo que ele diz fazer "com precisão quase neurótica". Ou seja, mesmo quando parece longe de sua origem, ele está na verdade na esquina onde o sertão encontra o Oriente. A prática deu a ele, diz, "uma contemplação mais calma da vida, com menos espaço para a ira, o nervosismo".

— A mudança teve reflexos benéficos para todos — testemunha Roberta Ramalho, sua atual mulher e parceira na editora e na gravadora Avôhai. — Principalmente para mim e nossos filhos, José e Linda, que convivemos com ele.

Alceu Valença, companheiro de décadas, chama a atenção para o lado caseiro do artista:

— O Zé é uma pessoa mais reclusa, você não o encontra com facilidade na rua, num bar. Gosta de sua casa. E ali é absolutamente organizado, capaz de saber onde está a foto de um show que fez com 17 anos na Paraíba. 

Nem a meditação nem a serenidade trazida pela idade (62 anos) se traduzem em perdão. Também em "Indo com o tempo", ele diz: "E não perdoarei/ A quem me trouxe dor". E não se furta a citar alguns desses:

— O parceiro de Raul me sacaneou (Paulo Coelho não liberou as suas parcerias com Raul Seixas para o disco que Zé Ramalho fez em tributo ao baiano). Não cultivo a vingança, só digo que não esquecerei. Se cruzar com essas pessoas, vou para outro caminho, não vou jogar confete.

Considerações apocalípticas

O verso vale para a indústria fonográfica. Em disputa judicial com a editora EMI Songs desde 2005 por ela não ter permitido que ele gravasse suas próprias músicas, o autor acusa:

— Isso também está nesse verso. Esse CD é meu grito de independência. Mostrei-o para a Sony e a Universal, e elas aceitariam editá-lo quase como um favor. Não preciso disso. Agora, criei a Avôhai para editar meus CDs e os farei, se não anualmente, quase isso.

No álbum (misto de reflexão sobre o tempo, inventário de vida e considerações apocalípticas) e nas falas, os planos vêm junto com a ideia da morte.

— Vai chegar o dia em que não vou mais poder fazer música. E em alguma hora meu tempo de vida vai se acabar. Penso isso sem drama, sem morbidez — diz o artista que encerra seu disco com "Anúncio final", que aproxima sua origem e seu fim nos últimos versos, "E essa luz/ Se anuncia/ No sertão".

Fonte: O Globo

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